O
ano era 1966, na época eu tinha 8 anos. Tudo começou quando minha mãe adoeceu e
o problema de saúde era muito sério, ela tinha que ficar internada no hospital
de 4 a 6 meses.
Foi
então que um senhor muito bondoso viu a nossa situação e nos ajudou. Conseguiu
a vaga no hospital e uma no internato para mim. Como este senhor era da marinha
e estava sendo transferido desta capital para outra, ele recomendou às freiras
do internato que só a minha mãe me tiraria de lá quando recebesse alto do
hospital. Meus pais eram separados, eu tinha mais três irmãos, os dois mais
velhos ficaram com o meu avô e a mais nova foi para outro orfanato.
O
senhor e sua esposa foram me deixar no internato, à tarde já caía, eles
despediram-se de mim e foram embora. Foi a última vez que os vi e jamais os
esqueci.
Quando
entrei e fui passando pelos corredores frios, mas limpos e organizados, a
tristeza era imensa. Só vinha a imagem da minha família, éramos tão felizes
juntos e naquele momento estávamos todos separados. Por alguns minutos fiquei
como se estivesse anestesiada, de repente voltei para a realidade com a voz da
freira falando: suas coisas aqui, troque de roupa, lave as mãos e venha para o
refeitório que já está na hora do jantar.
Por
alguns instantes eu olhei ao redor e vi uma cama e um bidê (era assim que
chamava um móvel tipo criado-mudo.).
Chegando
ao refeitório tinha uma mesa enorme cheia de crianças ao redor sentadas, logo
procurei um lugar e sentei. Em seguida fizeram a prece e começaram a comer. O
cardápio era sopa de fruta-pão, o sabor era horrível! Mas, uma das meninas
falou para eu comer tudo, que não podia deixar comida no prato ou ficaria de
castigo sem a próxima refeição. Então, com muito sacrifício engoli a comida.
Após
o jantar íamos lavar a louça, todo trabalho era dividido em grupos. Eu como era
novata fui logo me entrosando no grupo de lavar a louça.
No
dia seguinte acordei com uma campainha tocando, era hora de acordar e tomar
banho. Fui ao banheiro e coloquei meu sapato em um cantinho no corredor, mas
quando voltei não estava lá. Perguntei a uma menina se ela havia visto meu
sapato. Ela falou que prenderam meu sapato, fiquei assustada e ela explicou que
quando alguma coisa era deixada à toa por uma das internas as freiras prendiam
o objeto e só devolvia depois de um mês. Achei aquilo muito injusto, pois havia
acabado de chegar e não sabia de nada. Perguntei o que podia fazer e a garota
respondeu que se eu pedisse desculpas à irmã Coração de Jesus, talvez ela me
desculpasse, contudo todas morriam de medo dela.
Tudo
ali era tão estranho e injusto. Procurei a irmã e pedi desculpas, expliquei que
não sabia de nada e ela me desculpou dizendo: Desta vez passa!
O
tempo foi passando e procurei me habituar naquela nova vida que no momento era
ali, que não tinha como fugir daquele lugar. Guardei meu sofrimento e segui
como uma criança normal, brincava quando podia, ia à escola, à missa e todos os
dias tinha aula de bordado, ensaios no coral, grupos de teatro, e no sábado era
o dia da faxina geral. Os domingos eram os dias de visita e apresentávamos
nossas peças, músicas, vendíamos os bordados para arrecadar dinheiro e comprar
materiais de higiene.
Eu
sempre apresentava tudo com muita alegria, depois das apresentações quase todo
mundo recebia visitas, menos eu e outra menina. Sentava-me em um banco perto
das árvores e começava a chorar, chorava tanto que soluçava, ficava muito
triste de não receber visitas e sabia que minha mãe estava doente.
Lá
era muito rígido, aprendíamos a dobrar e guardar nossa roupa. Se fizéssemos
errado toda roupa era jogada no chão para fazer tudo novamente. Na hora das
orações das irmãs tinha que fazer silêncio total, no sítio não podíamos apanhar
frutas fora de hora, um dia eu peguei uma fruta junto com as outras meninas e a
irmã viu e perguntou quem havia pegado a fruta, mas ninguém respondeu só eu
disse que havia sido eu e ela me deixou de castigo, sem lanche e sem recreio
por três dias. E era assim.
Aconteciam
muitas coisas estranhas, eu morria de medo de ficar sozinha naquele lugar. Uma
vez eu estava perto da caixa d’água e senti alguém soprar no meu ouvido, como
estava escuro tratei de sair de lá. No outro dia fui lá e olhei para dentro da
caixa e vi uns botões do fogão que estávamos procurando. Alguém tinha jogado lá
dentro, mas eu estava com medo de dizer pra que não pensassem que tinha sido
eu. No entanto havia uma irmã em que eu confiava e contei para ela. Ela
investigou e descobriu quem havia jogado.
Certa
vez adoeci com caxumba e não podia sair do dormitório. Como todos os dias tinha
missa à tarde eu ficava sozinha, então eu deitava e me cobria dos pés a cabeça.
Quando todos voltavam da missa já iam se preparando para o jantar, às vezes
esqueciam de mim, então eu começava a bater no piso de madeira para ver se
alguém ouvia e lembrava de levar meu jantar.
Aconteciam
também coisas engraçadas, como da vez que fomos arrumar a igreja e bebemos o
vinho do padre, adormecemos no chão por trás da cortina do altar. A sorte foi
que a irmã nos encontrou antes da missa, nos acordou e nos colocou de castigo.
Depois
de um ano minha mãe foi me buscar.
Essas
lembranças ficaram para sempre.
A VOLTA AO INTERNATO
Aconteceu
aos quarenta anos, já casada, com minha família, meu trabalho, tudo na paz do
Senhor. Foi então que uma amiga perguntou se eu queria ensinar culinária. Eu
adoro cozinhar, de imediato aceitei sem nem perguntar onde era o lugar. Ela me
explicou que as alunas eram meninas internas, adolescentes carentes e que não
seria fácil de lidar com elas, mesmo assim aceitei e logo em seguida ela me
falou o lugar. Fiquei muito feliz de poder entrar lá novamente. Sabia que
muitas coisas tinham mudado, mas alguma coisa daquele tempo era de existir.
No
primeiro dia de aula quando entrei senti um frio na barriga e fiquei muito
emocionada, mas não deixei transparecer nada. Quando eu ia passando as meninas
me olhavam com um jeito de que não estavam nem aí para o curso.
A freira veio me mostrar a cozinha
onde eu iria ensinar e onde estava o material.
O
primeiro dia não foi fácil. Pedi para que todas dessem as mãos e rezamos. Fiz
uma receita fácil para que todas participassem. Daí em diante meu trabalho foi
de amor, paciência, humildade e perseverança, se alguém não queria assistir à
aula não adiantava insistir. Às vezes elas estavam tristes e se isolavam do
grupo e eu respeitava aquele momento.
Teve
uma que comeu tanto chocolate escondido que teve uma alergia, seu rosto estava
todo inchado. Com poucos dias de aula a menina que mais se isolava era quem
mais me ajudava. Os dias foram passando e eu já era chamada de tia, sem falar
que elas estavam aprendendo as receitas.
No
último dia receberíamos as coordenadoras do curso, então guardei o restante do
material para no outro dia terminarmos as receitas. Contudo, logo que cheguei
notei que faltavam vários materiais e a Irmã que era a diretora havia saído.
Falei para as internas que não seria possível fazermos receita alguma, pois
faltavam materiais. Ficou aquela confusão, cada uma apontando pra outra. Falei
que sentia muito, pois era o encerramento do curso. Esperei algum tempo por lá,
até que chegaram com uma bolsa cheia das coisas que tinham escondido. Falei que
não me interessava quem foi, o importante era que o material apareceu.
Elas
fizeram todas as receitas, a mesa ficou cheia de comida, e neste momento final
falei pra elas que tinha vivido lá quando criança e da minha emoção de estar
ali e o mais gratificante foi ter conseguido que elas aprendessem, era o
primeiro certificado delas e quando saíssem de lá já tinham como trabalhar.
Chorei e elas me abraçaram carinhosamente.
Tudo isso foi uma grande lição na minha vida,
percebi como Deus prepara os caminhos da nossa vida, nesta vida temos outras
vidas que são acontecimentos como este. Sou muito grata ao Senhor pela
oportunidade que tive.